Na contramão do planeta, Brasil endurecerá ainda mais política de drogas

Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas decide que a abstinência do uso de substâncias será a principal medida a ser adotada.

Nos Estados Unidos, 30 territórios da federação legalizaram o uso medicinal da maconha. No Uruguai, a distribuição e venda da Cannabis em farmácias tornou-se responsabilidade do Estado. Em Portugal, a descriminalização do porte de drogas é uma realidade desde 2001. No Canadá, políticas de redução de danos são voltadas para usuários de substâncias como heroína.

O Brasil, entretanto, acaba de decidir que a melhor solução para a política de guerra às drogas é endurecer ainda mais as restrições para os usuários que procuram algum tipo de tratamento. Com 16 votos a favor em um total de 22 membros presentes, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) aprovou uma guinada nas determinação da política de entorpecentes.

Encabeçada por Osmar Terra, ministro do Desenvolvimento Social, a reunião decidiu que a “orientação central da Política Nacional sobre Drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”.

Médico filiado ao PMDB, Terra é um opositor da política de legalização da maconha e das medidas de redução de danos. Em um texto publicado na Folha de S.Paulo, o ministro afirmou que “somos testemunhas de um verdadeiro holocausto de nossa juventude, com nosso país batendo recordes mundiais de mortes violentas a cada ano. Essas mortes, é bom que se diga, decorrem mais do efeito das drogas que da ação do tráfico (…)”.

Após a aprovação da resolução do Conad, a conselheira Clarissa Guedes — representante do Conselho Federal de Psicologia e defensora da redução de danos — pediu vistas do processo, para que a decisão pudesse ser tomada em outro momento. Torquato Jardim, ministro da Justiça, indeferiu o pedido.

Política de redução de danos

Apesar de Osmar Terra afirmar que não há indícios científicos sobre os benefícios de uma política menos restritiva em relação às drogas, diferentes projetos ao redor do mundo desmentem essa afirmação. O Brasil experimentou um projeto desse tipo em 2014, quando a cidade de São Paulo iniciou o programa De Braços Abertos.

Ao invés de priorizar a internação compulsória e o tratamento médico imediato dos usuários de drogas, o projeto utiliza uma política de saúde conhecida como redução de danos. Em outras palavras, a principal estratégia do De Abraços Abertos não é encerrar imediatamente o consumo de crack, mas atenuar os prejuízos biológicos e sociais para gerar transformações a longo prazo.

Por conta disso, o programa implantado pela gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) oferece alimentação e hospedagem, além de abrir a possibilidade do participante para ingressar em atividades remuneradas, como varrição de ruas, manutenção de uma horta comunitária, oficinas de costura e até com um salão de beleza.

“A primeira pergunta que se faz é: a pessoa se recuperou com o De Braços Abertos? E esse é um programa para reduzir o dano, o objetivo é que se controle o consumo de crack ”, afirma Genivaldo Brandão, coordenador-geral do projeto pela Adesaf. “A gente está recuperando da condição de miséria, de exclusão e que os direitos dessas pessoas sejam garantidos.”

Caso cumpra os horários determinados, o participante do programa ganha uma remuneração semanal de cerca de R$150 – de acordo com a Adesaf, uma média diária de 140 pessoas participavam das atividades de trabalho no início deste ano. As medidas do De Braços Abertos têm reflexo direto na região: de acordo com dados da Polícia Militar de São Paulo, houve a diminuição de 80% nos roubos de veículo e de 33% no furto a pessoas após um ano de implantação do programa.

Criticado durante a campanha eleitoral por João Doria (PSDB), o De Braços Abertos corre o risco de ser encerrado ainda neste ano: o atual prefeito anunciou no início de sua gestão que lançaria o Programa Redenção, que terá uma parceria mais estreita com o Programa Recomeço, realizado pelo governo estadual e que prevê a abstinência do uso do crack em comunidades terapêuticas.

Cerco à ciência

A decisão do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas parece ganhar eco em cada vez mais instituições que representam o Estado. Em fevereiro, o médico Elisaldo Carlini foi intimado pela polícia de São Paulo devido a uma acusação de apologia às drogas. Não se trata de um caso corriqueiro, uma vez que Carlini, de 88 anos, é um dos maiores especialistas na pesquisa sobre drogas psicotrópicas do Brasil.

Especializado em psicofarmacologia pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, e um dos criadores do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), o professor emérito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) é considerado pela Academia Brasileira de Ciência o cientista brasileiro mais respeitado na área de drogas.

Ainda nos anos 1970, ele foi responsável por produzir pesquisas pioneiras que caracterizaram a ação anti-convulsivante da maconha, que só recentemente começou a ser amplamente reconhecida no Brasil.

Apesar da fala calma, Carlini se mostrou indignado com a acusação. “Essa lei brasileira [que proibe o uso medicinal da cannabis] é uma vergonha para o país, vou continuar lutando da maneira que puder para que ela acabe”, afirmou à GALILEU o professor, que dedica parte de seu tempo ao tratamento de um câncer de próstata.

Uma guerra perdida

Sob um discurso de combate ao crime e “restauro à ordem”, o governo de Michel Temer (PMDB) deu uma guinada: aumentou a participação de militares em cargos estratétigicos e liderou a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro.

Essa seria a melhor solução? Em números levantados nos últimos 10 anos, o orçamento da segurança pública do Rio de Janeiro cresceu 136% e passou a consumir cerca de R$ 12,2 bilhões em 2017. Acontece que os crimes aumentaram de maneira proporcional e, em 2017, o estado viveu o seu ano mais violento desde 2009, com 6.731 pessoas assassinadas.

A utilização de militares não é prática inédita: entre abril de 2014 e junho de 2015, no governo de Dilma Rousseff (PT), foram gastos mais de R$ 350 milhões em operações no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Três anos depois, os militares voltaram para a região, que não teve nenhuma melhoria.

Enquanto isso, a educação no Rio de Janeiro sofreu cortes de 50% do orçamento da Educação nos últimos anos. Em 2017, apenas 13% dos investimentos para o setor foram efetivamente realizados — ou seja, dos R$ 257 milhões previstos, o governo utilizou apenas R$ 32 milhões em melhorias educacionais no estado.

Impunidade?

Apesar do ministro Osmar Terra afirmar que não há evidências científicas que sustentem críticas à atual política de guerra as drogas, outro relatório publicado recentemente fornece alguns indícios sobre a relação entre aumento da criminalização do uso de substâncias e crescimento da violência.

O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias divulgou em dezembro de 2017 que a população carcerária do país era de 726.712 pessoas em junho de 2016 — para ter ideia do aumento, em dezembro de 2014 esse número era de 622.202.

Os crimes relacionados ao tráfico de drogas são responsáveis por 28% dos encarceramentos, sendo o principal motivo para as prisões. Com o aumento das detenções, há a superlotação do sistema: com capacidade para abrigar 368.049 pessoas, o déficit carcerário representa na prática que há dois presos para cada vaga em uma unidade prisional. E isso leva a consequências ainda piores: as condições degradantes nas prisões foram o principal motivo para o fortalecimento de organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Na prática, o Estado perdeu a autoridade sobre a dinâmica das prisões. “São presídios comandados por facções criminais, que impõem suas regras no sistema”, disse o professor Rodrigo Azevedo em entrevista concedida à GALILEU em novembro de 2016. “O encarceramento se torna uma forma de organização do crime, com consequências bastante conhecidas fora do ambiente do contexto prisional.”

Contas rápidas

O debate sobre a política de descriminalização de usuários e legalização do uso de drogas extrapola os debates de saúde ou de segurança pública: em levantamento realizado pela empresa israelense Seedo, São Paulo foi indicada como a 14ª cidade do mundo onde mais se fuma maconha. São 16,55 toneladas de ganja são consumidas todos os anos na capital paulista. Caso houvesse a legalização da compra e o consequente recolhimento de impostos, a cidade arrecadaria mais de R$ 200 milhões.

De acordo com uma pesquisa da New Frontier Data, as vendas da maconha nos Estados Unidos renderam US$ 6,7 bilhões em 2016, e a projeção é de que alcancem US$ 24,5 bilhões em 2025. Em uma conta de padaria, o valor projetado em 2025 é cerca de quatro vezes superior ao que o governo de Michel Temer pretende arrecadar com a privatização da Eletrobras e, consequentemente, de toda a infraestrutura energética do Brasil.

Revista Galileu