Acesso à cannabis medicinal: a regulação sanitária e a ousadia de fazer cumprir a lei
O Brasil está vivenciando um movimento de revisão dos critérios regulatórios de produtos derivados da cannabis para uso medicinal. E a ousadia de cumprir a lei nesse campo se expressa em ao menos três ações:
> Garantir, de modo universal e igualitário, o direito à saúde conforme previsto no artigo 196 da Constituição de 1988, sem que dogmas, crenças ou interesses se sobreponham à obrigação do Estado;
> Desmistificar o preconceito em relação à planta, historicamente instituído por interesses econômicos; atender à lei 11.343/2006;
> Cumprir às exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), viabilizando os produtos no comércio local ou em associações de pacientes.
A RDC 327/2019, atual norma em vigor, foi instituída pela Anvisa e regulamentou a produção e a distribuição do medicamento, visando à redução do risco aos interessados. Os critérios regulatórios são essenciais para o estabelecimento de uma cultura de proteção da saúde. A segurança jurídica é preponderante para trazer amparo ao mercado farmacêutico da cannabis, aos marcos normativos da Anvisa e ao setor regulado. No entanto, potenciais imposições políticas geraram uma mudança de rumo ao longo da persistente iniciativa da Anvisa.
A consulta pública que precedeu a publicação da RDC 327/2019 demonstrou o interesse da autarquia em resolver uma demanda social. Depois disso, foi apresentada à Diretoria Colegiada uma norma célere, capaz de garantir ao mercado produtos com qualidade, eficácia e segurança, em oferta concorrencial saudável e acessível. Um pedido de vista, também legal, resultou em um novo texto, que foi aprovado e trouxe uma complexidade burocrática sem precedentes. Se houve intenção da autarquia de publicar uma norma mais factível, é evidente que não havia impedimentos legais para o modelo proposto.
Em novembro de 2022, as atenções estão novamente voltadas ao tema: chegou o momento de revisar as regras do setor. A previsão é que a nova consulta pública seja realizada em meados de 2023. Contudo, no mês passado ocorreu um webinar e reuniões com o setor regulado, além da iniciativa pioneira na agência de utilizar durante o processo regulatório o E-Participa – mecanismo digital do governo que permite a participação social. O prazo de contribuição se encerra amanhã, dia 17/11.
Há muitas questões importantes a serem pautadas, como o estabelecimento de regras para regulação dos produtos conforme o Guia de Fitoterápico da Organização Mundial de Saúde (OMS), permitindo reduzir o tempo na realização da pesquisa clínica. Considerando o atual conhecimento técnico e científico, também devem ser discutidas novas vias de administração, bem como indicações no folheto informativo.
No que tange às autorizações sanitárias, é necessário manter o modelo de excepcionalidade por pelo menos mais três anos para as empresas que já tenham pesquisa clínica em andamento, bem como conceder o direito de manipulação dos derivados da cannabis às farmácias com autorização especial, onde outros produtos controlados já são manipulados. Também é preciso alinhar os receituários médicos com aqueles utilizados para importação, além de simplificar o processo. Ao criar barreiras para o acesso ao tratamento com base em cannabis, o Estado viola um dever jurídico. A regulação, pautada na lei e na ciência, deve assegurar o interesse maior dos pacientes e o direito à saúde, com competitividade no mercado. Essa é a verdadeira ousadia.
Maria José Delgado Fagundes é CEO na MJDFagundesconsultoria, advogada, profissional na área de compliance, consultora especializada em saúde, sistemas regulatórios, setor farmacêutico e associações de suporte a pacientes.