O que mudou nas decisões judiciais em relação a criminalização das drogas no Brasil
A semelhança dada no tratamento entre usuários e traficantes nos últimos anos por parte dos tribunais de justiça, é algo recorrente. Contudo, de uns anos para cá, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) passaram a ver essas condutas de forma menos negativa, como explica o advogado criminalista Natan Duek:
“Os Tribunais Estaduais costumavam condenar qualquer pessoa pega com drogas na localidade de uma comunidade pelos crimes de tráfico e associação, mesmo com quantidades insignificantes, o que pode resultar em penas de 8 a 15 anos de prisão. No entanto, instâncias superiores vêm demonstrando uma mudança de postura positiva”.
O especialista revela haver casos em que os tribunais superiores determinam solturas de pessoas primárias presas com grandes quantidades, até mesmo com mais de 100kg.
“Isso tem tido um impacto relevante nos Tribunais Estaduais que passam a rever suas posições e impor penas menos severas, com maior exigência probatória para o crime de associação. Por exemplo, há pouco mais de um mês, consegui reduzir uma condenação de 9 anos e 6 meses para 1 ano e 11 meses (serviços comunitários) aqui no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O cliente havia sido condenado por tráfico e associação, mas no julgamento da apelação foi absolvido da associação e o tráfico privilegiado foi reconhecido”, explica Duek.
A Lei de Drogas
> Art. 33 – Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, configura pena de reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. As penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa.
> Art. 35 – Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º , e 34 desta Lei, pode ocasionar pena de reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.
Segundo o advogado, na Lei de Drogas há alguns mecanismos que abrem margem para seletividade penal. O primeiro deles é a distinção entre traficante e usuário, muitas vezes com critérios classistas, racistas e de ordem subjetiva, já que a lei fala em observar a quantidade, local, condições da ação, circunstâncias pessoais, conduta e antecedentes do agente.
“São incontáveis, até hoje, os casos de pessoas pobres pegas com pequenas quantidades de drogas presas como traficantes e/ou associados para fins de tráfico”, destaca o advogado que completa: “Até poucos anos atrás, era corriqueiro que uma pessoa pega com qualquer quantidade de droga que não se considerasse para uso pessoal, em uma localidade onde há presença de tráfico, fosse condenadas pelos dois crimes, cuja pena mínima somada seria de oito anos”.
Duek diz que o raciocínio empregado era bastante classista pois o Judiciário considerava que, para um indivíduo estar com uma alta quantidade de droga em região dominada pelo tráfico, onde a venda varejista não é permitida, a única conclusão possível seria que esta pessoa estaria associada com o tráfico.
Na prática, trata-se de instrumento de controle e sujeição das populações mais pobres, já que ser pego com drogas em uma favela poderia render altíssimas penas de prisão e a certeza de já responder ao processo preso.
O que mudou?
Hoje, há um movimento de mudança nos Tribunais Superiores para aumentar a exigência probatória para condenação por tráfico e associação para fins de tráfico, especialmente capitaneado pela 6ª Turma do STJ. Isto é: não basta ser pego com uma alta quantidade em localidade supostamente dominada pelo tráfico, é necessário comprovar que aquela pessoa esteja associada de forma estável e permanente com o crime.
Já em relação à causa de redução chamada tráfico privilegiado, o entendimento predominante era de que para altas quantidades não poderia ser aplicada à redução de até dois terços da pena. “Considerava-se que o simples fato de se estar com uma alta quantidade de drogas indicaria determinado envolvimento com facções criminosas, em razão do valor comercial”, ressalta o especialista.
Quando questionado sobre o tempo que centenas de pessoas passaram presas condenadas, muitas das vezes erroneamente, pelo crime de tráfico, Natan é contundente:
“Esse tempo nunca poderá ser devolvido. Sem falar em todos os gastos públicos para julgar os recursos nas cortes superiores. Muito se fala da quantidade de recursos e abarrotamento dos tribunais, mas pouco se fala do cenário de injustiças graves que precisam ser revertidas diariamente”.
Sou cidadão e tenho direitos!
A Constituição Federal prevê a inviolabilidade do domicílio, ou seja, uma força policial só poderia adentrar em uma residência munida de mandado ou em hipótese de flagrante delito.
“Era bastante comum a situação de uma pessoa pega com determinada quantidade de droga fora de casa ‘decidir voluntariamente’ (ao menos, era o que alegavam os agentes) levar os policiais à sua residência onde havia quantidades ainda maiores de entorpecentes. Esse consentimento, evidentemente, muitas vezes era permeado de ameaças, torturas e outras formas de violência”, afirma Duek, que destaca ser comum que esta ação fosse validada pelo Judiciário, alegando que a palavra dos agentes é dotada de fé pública e não deveria ser questionada.
Havia também, de acordo com o advogado, um precedente do STF que entendia que a própria presença de quantidade de droga dentro de uma residência configura uma situação de flagrante delito, de modo que a violação do domicílio seria validada.
“Isso era um verdadeiro estímulo ao desrespeito às garantias fundamentais por parte das Polícias (especialmente em favelas e comunidades pobres) e também à prática do ‘flagrante forjado’, já que, caso não achasse uma quantidade de droga após a invasão, o policial estaria sujeito à responsabilização disciplinar”, revelou.
Entretanto, desde 2021, a 6ª Turma do STJ estabeleceu acórdãos paradigmáticos determinando que a entrada só poderia ocorrer com mandado judicial (sob pena de nulidade de todas as provas) e, que havendo dúvida entre consentimento do morador alegado pelo agente policial, deveria prevalecer a versão do morador.
O novo entendimento é relevante, pois consagra a garantia da inviolabilidade do domicílio e atua no sentido de desestimular agentes policiais a invadirem residências, sabendo que podem colocar todo o trabalho de persecução penal em risco.
Cannabis medicinal
Outro avanço tem sido a jurisprudência relativa à cannabis medicinal. Até junho de 2022, entendia-se majoritariamente que não caberia ao Judiciário conceder habeas corpus de cultivo de cannabis medicinal, já que se trataria de competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Apesar disso, na mesma data, a 6ª Turma julgou dois casos paradigmáticos – e muitos outros que vieram após – de pessoas com insônia, ansiedade e câncer que visavam um salvo conduto de plantio. Além de tecer duras críticas à política proibicionista, os ministros deixaram clara a competência do Judiciário em conceder tais salvos condutos, demonstrando que permitir que uma pessoa não seja presa em função de plantar cannabis por razões medicinais seria diverso de autorizar o plantio. “Isso sim seria competência exclusiva da Anvisa”, diz Duek.
Conclusão
Natan Duek explica que diferentemente de outros sistemas judiciais, o sistema brasileiro não é baseado em precedentes, mas especialmente no texto da lei. Os precedentes, contudo, são relevantes e possuem grande força persuasiva, já que muitos julgadores não desejam ter suas decisões reformadas e passam a adotar os entendimentos dos Tribunais Superiores, de modo que tais decisões possuem grande impacto em âmbito nacional.
Tais avanços tampouco estão restritos aos acusados que podem pagar caros advogados. Diversos dos casos citados são patrocinados por Defensorias Públicas, mais do que capazes de levar tais demandas aos tribunais superiores, apesar do enorme volume de casos e dos problemas estruturais enfrentados.
“Isso, evidentemente, não quer dizer que o sistema penal tenha deixado de ser seletivo, classista, racista, influenciado por uma série de preconceitos e idiossincrasias, ou que tais entendimentos sejam adotados em todos os estados do país. Contudo, o fato destes entendimentos estarem sendo reafirmados pelos tribunais superiores possui uma força persuasiva, de modo que há uma tendência das instâncias inferiores em seguir o entendimento”, explica o advogado que conclui:
“Isso evita que precisemos chegar ao STJ ou STF para reconhecer direitos básicos como os exemplificados aqui, muitas vezes com uma pessoa presa aguardando o reconhecimento da violação dos seus direitos, tempo este, volto a dizer, que nunca poderá lhe ser devolvido.”