Conselho Federal de Psicologia quer suspender nova Política sobre Drogas
Conselho Federal de Psicologia quer suspender nova Política sobre Drogas.
Recém-aprovada em meio a protestos no Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad), a nova Política Nacional sobre Drogas, que foca na abstinência em detrimento da redução de danos, será alvo de medidas judiciais. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) estuda ir à Justiça para anular a votação, ocorrida na última quinta-feira, que aprovou as novas diretrizes das políticas públicas sobre entorpecentes no Brasil, com o voto favorável de 16 dos 22 integrantes do Conad presentes à reunião.
O CFP tem assento no conselho e chegou a pedir vista do projeto de resolução que estabeleceu a nova política durante a votação. Mas o ministro da Justiça, Torquato Jardim, que é presidente do Conad, afirmou que o projeto já tinha sido retirado de pauta para uma análise coletiva anteriormente e que não era mais possível adiar a deliberação.
Clarissa Guedes, representante do CFP no colegiado, protestou contra a decisão e se retirou da reunião. Segundo ela, a vista concedida antes havia sido requerida por outras três entidades que integram o Conad, mas não pelo conselho de psicólogos. Por isso, o CFP vai ingressar na Justiça, provavelmente com um mandado de segurança, para invalidar a votação.
– Entendemos que nosso direito foi desrespeitado, por isso estamos estudando as medidas cabíveis. A resolução e a votação foram extremamente confusos. Queríamos debater melhor os pontos, mas nos impediram – diz Clarissa.
O texto da resolução, de autoria do ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, que representa a pasta no Conad, muda radicalmente as políticas públicas sobre entorpecentes no país. E sinaliza uma posição oficial sobre o tema controverso da flexibilização da lei penal em relação a substâncias ilícitas ao determinar que “a orientação central da política nacional sobre drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população quanto a iniciativas de legalização das drogas”. O texto estabelece a “imediata alteração dos documentos legais de orientação da política nacional sobre drogas” e a “atualização da posição do governo brasileiro nos fóruns e organismos internacionais com vistas ao cumprimento da presente deliberação”.
Na prática, a resolução significa uma vitória do grupo que defende a abstinência como foco principal dos tratamentos em relação à corrente que trabalha com redução de danos no caso de dependentes que não conseguem ou não querem largar o vício. Enquanto a política de reduzir danos se aproxima mais da descriminalização, quando o assunto é levado para a seara legal, as novas diretrizes se alinham no sentido contrário, de manutenção ou endurecimento penal.
Após a aprovação do texto, Osmar Terra defendeu as orientações. “A política de drogas que está em vigência hoje tem causado danos à sociedade. Não existe exemplo de país que tenha liberado o uso de drogas e que tenha tido bons resultados”, avaliou Terra, de acordo com nota divulgada pela assessoria do Conad.
Para Clarissa, a aprovação do texto, apresentado em 19 de dezembro ao Conad, tem viés eleitoreiro. Segundo ela, reforça um discurso “proibicionista” que parte da sociedade aplaude e que estaria na contramão de estudos e experiências exitosas de assistência a dependentes:
– É um discurso que transmite a ideia errada de que a redução de danos se opõe à abstinência, como se fosse uma política que defendesse o uso de droga. Na verdade, a abstinência deve fazer parte do tratamento, mas não pode ser uma exigência para quem não consegue.
Também integrante do Conad – onde representa o Conselho Federal de Medicina (CFM), que votou a favor da resolução -, o psiquiatra Antônio Geraldo da Silva defende a mudança na política sobre drogas. Segundo ele, a maneira como a questão estava sendo conduzida até agora fazia com que a redução de danos, que devia ser apenas uma das estratégias para lidar com o problema, fosse encarada como a finalidade da política, deixando de lado o que considera que devia ser o objetivo de qualquer tratamento de usuários de drogas: a cessação do consumo.
– Como médicos, devemos sempre buscar o melhor resultado, que é a solução do problema, nunca só um resultado parcial – argumenta Silva, que também é presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina. – A redução de danos fica nesse meio do caminho, mas estava sendo vista como um fim da política de drogas. Não devemos querer que o usuário de drogas só reduza seu consumo, mas sim sua abstinência. A redução de danos pode ser um meio, uma estratégia, mas não a finalidade do tratamento.
Outros especialistas na área, no entanto, não pouparam críticas à nova Política Nacional sobre Drogas e ao próprio ministro Osmar Terra.
– O que estamos vendo é um retrocesso monumental – afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, no Rio. – Terra enfiou essa resolução goela abaixo do Conad, que conseguiu controlar no “tapetão”. É lamentável o que estamos vendo. É mais que um equívoco. É ultrapassado, é uma política de drogas jurássica, algo que só se pode imaginar viabilizado por um governo como o Temer, em que o retrocesso é geral.
A desconfiança sobre o modo que a resolução passou no Conad não é apenas de Julita. Um dia após a votação, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiu nota desautorizando a posição dos conselheiros que a representam no Conad e teriam votado a favor da resolução. No comunicado, a OAB disse que seu Conselho Federal “nem debateu as mudanças deliberadas na política de drogas” e que “desautoriza qualquer posição adotada em seu nome”. Os representantes do órgão no Conad são Patricia Nunes Naves e Paulo Fernando Melo da Costa, que não foram localizados pelo GLOBO para falar sobre a votação. A OAB informou que ainda vai discutir o tema na instância competente para levar um posicionamento ao Conad.
CAMINHO INTERMEDIÁRIO
Ainda segundo Julita, a aprovação da resolução no Conad é também apenas um “preâmbulo” das alterações na Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, a “Lei de Drogas”, propostas pelo próprio ministro Osmar Terra em 2013, quando exercia mandato de deputado. As mudanças também preconizam um foco maior na abstinência e na repressão no lugar da redução de danos, prevendo inclusive a “internação involuntária”, isto é, compulsória.
– Se esse texto for aprovado no Congresso, vamos retroceder 40 anos na questão das drogas – diz ela. – Terra usa pesquisas de opinião sem representatividade para dizer que a população não quer a legalização e para guiar as políticas públicas sobre o tema. Mas a verdade é que a sociedade brasileira diz que não quer a legalização ou regulamentação das drogas porque nunca foi informada adequadamente sobre a questão. Se ela soubesse dos danos causados mesmo pela atual política de drogas e não fosse informada da maneira hipócrita que é atualmente, o cenário seria bem diferente. Políticas públicas se fazem com dados científicos e levantamentos criteriosos, e não com pesquisas de opinião espúrias.
Opinião semelhante tem Andrea Gallassi, coordenadora geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília (UnB). Segundo ela, a resolução aprovada pelo Conad é mais um reflexo do momento de endurecimento das políticas sociais que o país atravessa, com o avanço de posições conservadoras, “e naturalmente na questão das drogas isso não poderia ser diferente”.
– Do meu ponto de vista é um claro retrocesso uma política de drogas que ignora a redução de danos como uma estratégia terapêutica, uma prática que há mais de 20 anos tem se consolidado ao redor do mundo – destaca. – Quando retiramos a redução de danos como possibilidade terapêutica do cardápio de ofertas aos usuários de drogas, reduzimos o leque de opções que temos para lidar com um problema complexo.
Para Andrea, há um engano de quem vê a redução de danos e a abstinência como políticas paradoxais ou contrárias.
– É preciso deixar claro que quem defende a redução de danos também acha que os usuários podem se tornar abstinentes – diz. – Ninguém está advogando o uso de drogas, mas não se pode negar um caminho intermediário que traz uma clara possibilidade de melhoria de qualidade de vida para as pessoas que não conseguem parar de usar drogas.
Andrea afirma ainda que a mudança de foco na política de drogas para a abstinência arrisca piorar o cenário de repressão e opressão aos usuários, que, sabendo ou achando que não conseguirão interromper o consumo, não mais se engajariam nos programas de redução de danos, que também tendem a minguar. Ela lembra, por exemplo, que isso já aconteceu em São Paulo, com anúncio do prefeito João Doria de que não vai mais investir no projeto “Braços abertos”, que atende viciados nas ruas.