Cannabis medicinal e o papel da ANVISA

A legalização da maconha está no ar.

O STF julga recurso que pode mudar a forma como a substância é tratada no Brasil (RE 635659, rel. Gilmar Mendes). Contudo, pouco se fala sobre o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Vamos discutir o ponto.

Houve diversos avanços administrativos no uso terapêutico da maconha. Em 2015, a importação de remédios com canabidiol havia sido regulada, pela ANVISA, para o tratamento de convulsões e perda de memória associada ao Alzheimer. Em 2016, a agência permitiu o registro de remédios à base de tetraidrocanabinol – outro princípio da maconha – para aliviar sintomas de esclerose múltipla.

A última novidade veio por meio da resolução ANVISA 126/17. Por essa resolução, a cannabis sativa passou a se enquadrar como planta medicinal na Lista de Denominações Comuns Brasileiras, rol de nomes oficiais para todas as substâncias que são, ou podem vir a ser, de interesse da indústria farmacêutica.

Admitir o potencial terapêutico da cannabis – e não apenas de alguns de seus componentes – corresponde a mais passo um rumo à flexibilização de seu uso. Pela primeira vez, a planta em si é concebida como possível medicamento.

Passo largo, mas cauteloso. Para liberar o uso da maconha para fins medicinais, há, ainda, necessidade de se definir, em resolução da agência, parâmetros, hipóteses de registro e procedimentos para seu uso, tal como ocorreu com o THC e com o canabidiol. O reconhecimento do potencial medicinal da erva não libera, de imediato, seu consumo terapêutico. Em todo caso, o efeito simbólico da inclusão é grande.

A postura da ANVISA demonstra inclinação experimental em relação à maconha. Se, por um lado, as decisões dos últimos dois anos apontam para relativização em relação à proibição – ao menos para fins medicinais -, por outro, o gradualismo da flexibilização revela postura minimalista, com vistas a reduzir o risco de desgaste, social e político, gerado pela resolução definitiva de tema polêmico. Há, sempre, o risco de backlash: se a ANVISA avançar demais, pode ser enquadrada pelo Legislativo.

Apesar de ainda não ter efeito prático, o reconhecimento do caráter medicinal da maconha sinaliza tendência pró-flexibilização por parte da ANVISA. Isso é relevante, já que a agência tem papel importante na decisão acerca de sua legalização – inclusive para fins recreativos. Explica-se.

O enquadramento da maconha como substância psicotrópica, cujo uso recreativo é vedado pelo art. 28 da Lei de Entorpecentes, é determinado pela Portaria SVS/MS nº 344, editada pelo Ministério da Saúde, mas que hoje pode ser revista pela ANVISA. Ou seja: além do Legislativo e do Judiciário, a agência é importante elemento na definição do que é droga ilícita. Ela possui competência para excluir a substância do alcance da norma penal que proíbe seu consumo. Em tese, poderia legalizá-la por via administrativa. É improvável que o faça, mas pode preparar o caminho.

Assim, num contexto de aparente desinteresse/impasse do Poder Legislativo, e de paralisação do STF em função de pedido de vista, a ANVISA se torna uma instituição – relativamente oculta se comparada aos poderes da República – muito relevante para a discussão. Não que ela vá legalizar. Mas ela pode flexibilizar agora.

jota.info