‘Mundo não acabou depois da legalização da maconha’
RIO – Ainda é cedo para afirmar se a legalização de produção, distribuição e venda de maconha no Uruguai funcionou, diz o sociólogo que comandou o processo, ao lado do ex-presidente José Mujica.
Mas Julio Calzada defende que, apesar do receio da população, o país segue sem crise de segurança ou moral. Ele está no Rio para o evento “Maconha — Usos, políticas e interfaces com a saúde e os direitos”, promovido pela Fiocruz. Pesquisadores da área, além de representantes dos ministérios da Saúde e Justiça e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária participação, desta quarta a sexta-feira, de ampla discussão sobre o tema. Nela, a Fiocruz, órgão de pesquisa em saúde do governo federal, fará um posicionamento público: “a descriminalização de plantio, porte e uso de drogas e a consolidação das políticas de cuidado aos usuários (…) são fundamentais”.
Já é possível ter uma avaliação do processo da legalização uruguaio?
Para avaliar uma mudança tão forte de paradigma, é preciso ter mais tempo. Em três, quatro anos, poderemos dizer qual foi o real impacto da política. Mas já podemos dizer algo muito importante: o mundo não acabou. A maconha está regulada, existem clubes de cannabis, cultivadores domésticos, e não há nenhuma crise no Uruguai, nem de segurança, nem moral.
E isso já pode ser considerado um resultado positivo?
É um avanço significativo. Essa política não vai acabar com o narcotráfico, mas já existem 3.500 pessoas registradas, entre plantadores e clubistas, que não têm vinculação e nem entregam milhares de dólares ao mercado negro.
No início da implantação da lei, a população uruguaia era contrária à medida e até temerosa. Isso mudou?
São medos compreensíveis. Mas não houve nenhuma disparada do consumo por causa da lei (este mês, o Conselho Nacional de Drogas mostrou que 9,3% da população uruguaia usaram maconha nos últimos 12 meses, em comparação a 8,3% em 2011, o menor aumento em 14 anos).
Que dimensões além do consumo estão sendo monitoradas?
Vamos monitorar a saúde, queremos saber se as pessoas são afetadas pelo consumo da maconha; a convivência social; a segurança; a aplicação justa da lei, ou seja, embora a maconha seja consumida em setores de humildes a altos, hoje 99% dos presos são pobres; e, finalmente, a governança política, pois até agora o paradigma global da guerra às drogas era eliminá-las.
Este paradigma já está mudando?
Está pelo menos em discussão. Este paradigma tem como centro a proibição, e pensava-se que isto diminuiria o consumo, mas não reduziu. Houve um efeito perverso. No mundo, são 250 milhões de usuários (de drogas ilícitas) deixados nas mãos de pessoas criminosas. Não se trata de um descriminalização generalizada, mas de uma regulação que permita ao Estado controlar a qualidade e os preços da maconha.
A mudança de governo federal, mesmo sendo partidário de Mujica, teve impacto sobre a política?
Existe uma continuidade. O Instituto de Regulação e Controle da Cannabis está funcionando, os clubes estão crescendo, os cultivadores estão em atividade. Falta ao governo implementar a última fase, de distribuição e venda pelas farmácias (de até 40 gramas mensais de maconha).
Por que a demora?
O Estado tem um processo de licitação em curso. Das 25 empresas que apresentaram propostas, 11 ainda estão sendo avaliadas. A lentidão é porque é um processo muito exigente. As empresas precisam mostrar de onde vem o capital para que indivíduos do mercado negro não produzam legalmente no país. Não estou no governo para dizer quando, mas em breve isso será concluído.
E o que falta para o Uruguai garantir acesso à maconha medicinal?
Ainda não existe a venda. Mas há projetos apresentados para o Ministério da Saúde, e um deles já foi aprovado para pesquisa e produção.
O que foi mais importante no pioneirismo uruguaio: a dimensão do país, o secularismo, as políticas em curso…?
Esta lei se dá como resultado de um conjunto de fenômenos dos últimos dez anos. O Uruguai é muito secularizado; trabalhou para a redução da pobreza, para tornar a sociedade mais equitativa. E, em 2012, havia o aumento da violência. A partir de uma análise disso, um dos aspectos mais pronunciados eram os mercados clandestinos de drogas.
A priori a lei era voltada para reduzir a violência?
É uma lei que em seus enunciados tem a perspectiva da saúde pública, dos direitos humanos, da redução de danos. Mas que se dá em uma análise da segurança. De qualquer forma, saberemos se a lei é boa não apenas se reduzirmos a criminalidade, e sim no conjunto de aspectos. Estudamos exemplos de outros países para construir uma política global.
Estudaram o caso brasileiro? O senhor tem uma opinião sobre o julgamento do recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal, que pode descriminalizar o uso de todas as drogas?
É difícil, não é pertinente opinar sobre a realidade interna dos países. Na Argentina, a Suprema Corte estabeleceu jurisprudência que descriminalizou a posse de pequena quantidade; o Chile tem um processo a nível dos municípios, algo raro para a América Latina; no Equador, o Poder Executivo autorizou o porte para consumo pessoal; na Colômbia, há leis no caminho da maconha medicinal; na Costa Rica, outras iniciativas.
Essa pode ser considerada uma tendência latino-americana?
Há uma efervescência de ideias. Estão buscando alternativas que sejam mais humanas. Vivemos 50 anos com uma política inflexível, hermética, que dizia que todos têm que fazer o mesmo, sendo um país de mais de 200 milhões de habitantes, como o Brasil, ou de três milhões, como o Uruguai. O que reivindicamos é que cada país tenha a possibilidade de realizar a política pública de drogas mais adequada de acordo com a sua realidade.
O modelo uruguaio poderia servir de exemplo para outros países?
Não criamos um modelo, estamos tentando um caminho. Não podíamos seguir fazendo o mesmo e esperar resultado diferente. No mundo, não existe modelo, nem mesmo dentro dos EUA: são 24 estados com leis diferentes sobre o uso medicinal. Temos a Assembleia Geral da ONU, em 2016, onde o que será discutido não é se o caminho é regular ou não a maconha, mas sim qual é a melhor forma de regulá-la.